segunda-feira, 16 de abril de 2018

Coluna Claquete - Filme da Semana: "Nascido Para Matar"





Newton Ramalho

 

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Filme recomendado: “Nascido para Matar”

Nascido para endoidar...

Eu queria encontrar pessoas estimulantes e interessantes de uma civilização antiga e matá-los. Eu queria ser o primeiro garoto do meu quarteirão a conseguir uma morte confirmada...
Entrevista do recruta Joker à equipe de televisão

A notícia da morte de R. Lee Ermey no último 15 de abril me levou a refletir sobre o mais famoso filme que participou, “Nascido Para Matar” (“Full Metal Jacket”, EUA, 1987). Ermey fez o inesquecível Sargento Hartman, figura chave na primeira parte, e onde usou muito de sua experiência pessoal no corpo de fuzileiros americanos.
A questão que me veio à mente foi: será que o mundo mudou da época do Vietnã para cá? A verdade é que, após um período de distensão com a queda do Muro de Berlim, e o fim do comunismo, o mundo parece ter entrado em um lamaçal de intolerância só equivalente ao crescimento do nazismo nos anos 30.
Em meio aos noticiários de matança de civis na Síria, atentados terroristas em vários lugares, incompreensão total com a situação dos refugiados, e guerras por todos os lados, este filme parece muito apropriado para revisitar. É um dos melhores trabalhos de Stanley Kubrick, que fala sobre a guerra do Vietnã.
A guerra, que é pano de fundo para o filme, ocorreu no Vietnã, entre o fim dos anos sessenta, e, começo dos setenta. Antiga colônia francesa, chamada Indochina, o país travou uma sangrenta luta de libertação com a França, entre 1946 e 1954, depois de quase um século de ocupação. Além de ter perdido a colônia, a França ainda teve cem mil soldados mortos, e, cento e quinze mil feridos. O Vietnã foi então dividido em dois, ficando o Norte na influência comunista, e, o Sul, apoiado pelos Estados Unidos.
A partir de 1961, devido à fraqueza e a corrupção do totalitário governo de Ngo Dinh Diem, os americanos começaram a participar, além de armamentos, como “consultores militares”. De mero argumento da campanha de Kennedy (que seria convenientemente “esquecido” após uma mais que provável reeleição), virou ponto de honra para o governo de Lyndon Johnson, após a morte do seu carismático antecessor.
Entre 1965 e 1973, houve participação ativa do exército americano no Vietnã, chegando a 2,7 milhões de jovens americanos. Morreram 57.939 soldados dos Estados Unidos, 180.000 sul-vietnamitas, e, 900.000 norte-vietnamitas, entre soldados e civis. Mais de um milhão de crianças ficaram órfãs, e, os soldados americanos deixaram cerca de 200.000 crianças ilegítimas para trás. Em 1975, foi selada a vitória, com a reunificação do país.
Os grandes responsáveis pela vitória vietnamita foram os vietcongues, que utilizaram com sucesso táticas de guerrilha na selva nunca antes observadas em guerras tradicionais. Os guerrilheiros chegaram a escavar uma malha de túneis com mais de trezentos quilômetros.
Muitos filmes foram feitos sobre a guerra do Vietnã, mas a maioria não passa de fantasia, de quem quer ganhar, no cinema, o que foi perdido na vida real. Geralmente são filmes de segunda linha, como os Bradock’s de Chuck Norris e outros do gênero. Os mais interessantes, são os que encaram o conflito pela ótica de quem estava na linha de frente. Podem ser citados “Platoon”, “Apocalipse Now”, “Franco-Atirador”, “Amargo Regresso”, e, entre os bons exemplos, “Nascido Para Matar”.
Este filme foi realizado em 1985, dez anos após o término do conflito. “Nascido Para Matar” foi dirigido e produzido por Stanley Kubrick, que também escreveu o roteiro, junto com o autor da história original, Gustav Hasford. Hasford foi fuzileiro, e, serviu no Vietnã como correspondente de guerra. Sua vivência pessoal permitiu criar o protagonista, recruta Joker (Matthew Modine).
O filme de Kubrick é dividido em dois atos. Na primeira parte, é mostrada a fase de treinamento dos recrutas, na ilha Parris, onde um curso de seis semanas os tornaria aptos a partirem para o front. O treinamento, que não deve ser muito diferente em exército nenhum do mundo, transforma seres humanos, normais, e, alienados, em máquinas de matar, verdadeiros zumbis, prontos a entrar em ação, a partir da ordem do superior.
Para fazer isso, os recrutas contaram com o auxílio do “simpático” sargento Hartman, vivido pelo recém-falecido R. Lee Ermey, que foi realmente instrutor de um campo de recrutas, e lutou no Vietnã. Hartman submetia o grupo e principalmente o moleirão Leonard (Vincent D’Onofrio), que ganhou do sargento o apelido de Gomer Pyle, um personagem humorístico da tv americana,  a uma pressão intolerável. A loucura do treinamento foi expressada na loucura do recruta, numa recriação da imagem de Frankenstein.
A segunda parte do filme passa-se no Vietnã. Entre a convivência com um povo (literalmente) prostituído pelos americanos, e, a luta contra um inimigo invisível, a preocupação era uma só: conseguir voltar para casa inteiro. O clímax desse ato passa-se num vilarejo abandonado onde um franco-atirador põe toda a companhia em pânico. É a loucura da guerra, traduzida na soma das loucuras individuais.
O elenco está muito bom, não apenas Modine, o já citado Ermey, e Vincent D’Onofrio, que em seu primeiro papel importante no cinema faz uma fantástica caracterização como o frágil Gomer Pyle. É dele, a citação que dá o título original ao filme: full metal jacket. Para os leigos em armamentos, full metal jacket é o tipo de projétil utilizado pelo exército, onde a ponta é revestida por um metal duro, com alma de chumbo, dotada de grande poder de perfuração.
As edições em DVD e Blu-Ray, apesar de trazerem o filme com ótima qualidade de som e imagem, não trazem os ótimos documentários sobre o filme. Esses documentários estão agrupados em um disco que fazia parte de uma coletânea sobre o conjunto da obra de Kubrick. Num deles, sobre o trabalho de R. Lee Ermey, descobrimos que ele tinha sido contratado apenas como consultor, mas Kubrick gostou tanto dele que o convidou para fazer parte do elenco.
No mundo pós 11 de setembro, há uma vigorosa semelhança entre o antigo Vietnã e os atuais Iraque e Afeganistão, e tantos outros lugares onde os americanos se intrometem, com prepotência e agressividade, que apenas geram mais ódio. “Nascido para Matar” tem seu valor, por mostrar que qualquer guerra é uma soma de loucuras. Políticas, ideologias, ambições ou fanatismos, a coisa resume-se numa simples conclusão filosófica: guerra é coisa de doido!

 

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