terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Coluna Claquete - Artigo: Oscar, porque o meu filme não ganhou?



Newton Ramalho


Artigo: Oscar, porque meu filme não ganhou?


Hoje cedo, ainda na ressaca da premiação do Oscar, me deparei com centenas de mensagens num grupo de Whats App formado por críticos de cinema. Havia mensagens dos mais variados teores, mas a única coisa em comum é que não existia unanimidade em praticamente nada. Achei isso divertido, pois embora para o mundo externo sejamos aqueles especialistas que entendem tudo da Sétima Arte, no fundo não deixamos de ser o mesmo que eles – apreciadores de cinema.
Eu me diverti com as discussões do grupo, sempre apaixonadas e vibrantes, onde conceitos filosóficos se contrapunham a comentários irados a quem ousava falar mal de alguma personalidade idolatrada. Assim, a premiada Olivia Colman era malhada pelos fãs de Glenn Close, irritados por sua amada estrela ter sido esnobada pela Academia pela sétima vez, enquanto outros atacavam ou defendiam Spike Lee por sua reação ante o anúncio da vitória de “Green Book”.
Muitas vezes se imagina que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas (em inglês Academy of Motion Picture Arts and Sciences) seja um organismo poderoso e maquiavélico, que dita as premiações de acordo com os interesses mais velados. Ou seja, um conceito tão fantasioso e longe da realidade como o que se pensa da Maçonaria, por exemplo.
Na verdade, a Academia é uma organização profissional honorária dedicada ao desenvolvimento da arte e ciência do cinema. Ela é composta por mais de oito mil membros, todos ligados de alguma forma à indústria do cinema. Para fazer parte, é necessário ter sido indicado para alguma premiação do Oscar, ou ser apoiado por dois membros ativos da mesma categoria do profissional que deseja fazer parte do grupo.
Para as indicações, os membros de cada subgrupos escolhem entre as obras inscritas as que participarão da seleção final. Assim, diretores escolhem os finalistas de Melhor Diretor, atores escolhem os finalistas de Melhor Ator e Atriz, editores escolhem os finalistas de Melhor Edição, etc.. Já na seleção final, todos os membros ativos da Academia podem votar como quiserem através de voto secreto.
Um detalhe que talvez tenha chamado a atenção este ano foi o fato de “Roma” ter sido indicado tanto para Filme Estrangeiro como para Melhor Filme, além de outras categorias. Para concorrer na categoria Filme Estrangeiro, o filme em língua estrangeira tem de ter mais de 40 minutos, ser produzido fora dos EUA e ter predominantemente diálogos em língua não inglesa. Cada país indica um representante. Mas, o filme também pode ser indicado para outras categorias, Foi o caso de “Roma”, que concorria em dez categorias e ganhou os prêmios de Melhor Filme Estrangeiro, Melhor Direção e Melhor Fotografia.
O Oscar deste ano foi um dos mais equilibrados dos últimos tempos, já que não havia nenhum “Titanic” ou “Avatar” na disputa. E por isso mesmo, foi uma premiação repleta de gritos e ranger de dentes dos fãs insatisfeitos com os resultados. “Green Book” ganhou Melhor Filme, Ator Coadjuvante e Roteiro Original. “Bohemian Rhapsody” levou Melhor Ator, Edição, Mixagem de Som e Edição de Som.
A boa – e merecida – surpresa foram as premiações de Direção de Arte, Figurino e Trilha Sonora para “Pantera Negra”, que um tipo de filme geralmente esnobado nas premiações. Outros não se saíram tão bem, como “Vice”, que tinha oito indicações e só ganhou na categoria Maquiagem. Outro que perdeu feio foi “A Favorita”, que tinha dez indicações e só levou Melhor Atriz – sob meus protestos, pois eu estava no fã-clube de Glenn Close!
Outras premiações também me agradaram muito, como a Melhor Canção para “Nasce uma Estrela”, Melhor Documentário para “Free Solo”, Melhor Animação para “Homem-Aranha no Aranhaverso” e Efeitos Visuais para “O Primeiro Homem”. Essa diversidade de resultados leva à pergunta inicial: se todos os votantes são especialistas em cinema, porque não houve unanimidade?
Bem, poderíamos parafrasear Nelson Rodrigues, dizendo que toda unanimidade é burra, e encerrar o assunto. Mas, a verdade está contida mesmo nas entrelinhas do espirituoso cronista. Não existe unanimidade, pois cada pessoa tem não apenas gostos e preferências pessoais, como também crenças e ideologias, e acima de tudo uma história de vida que o leva inconscientemente a gostar ou não de algo.
Pessoalmente, achei “Roma” meio insosso e detestei “A Favorita”, enquanto alguns colegas colocaram Alfonso Cuarón entre Deus e o Papa, e ficaram altamente indignados com a escassez de prêmios do filme Lanthimos. Spike Lee ganhou um Oscar pelo roteiro de “Infiltrado na Klan” – que nunca tinha ganhado – e ficou bravo com a revelação de Melhor Filme para “Green Book”.
Aliás, este foi o Oscar que mais premiou negros e mulheres, e incluiu vários filmes com temática que remete à questão do negro americano. Enquanto surgiram discussões exaltadas sobre “Green Book” ser uma versão invertida de “Conduzindo Miss Daisy”, outros teciam loas ao elenco e equipe técnica de “Pantera Negra”, formada predominantemente por negros.
O mais curioso é que esta premiação é absolutamente simbólica. O fato de ganhar um Oscar será apenas uma frase adicionada ao cartaz do filme, já que o que fará o filme ser visto e revisto ao longo dos tempos será a carga emocional que ele desperta no espectador. E como já disse antes, isso é único e intransferível.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Coluna Claquete - Filme Recomendado: "Brava Gente Brasileira"



Newton Ramalho


Filme recomendado: “Brava Gente Brasileira”


Cavaleiros de Tróia do Pantanal

Durante muito tempo tive algum preconceito em relação ao cinema nacional. Talvez por coincidir a minha juventude com a época das "pornochanchadas", tomei certa aversão às produções tupiniquins, dando preferência ao que vinha de fora. À medida que fui amadurecendo, aprendi que nada é perfeito (nem eu, inclusive), e que é melhor experimentar, para depois criticar.
Não existe nada pior do que uma opinião do tipo "não vi e não gostei". Existem produções brasileiras ótimas, do mesmo jeito que saem produtos de Hollywood que não valem o que o Garfield enterra - ou enterraria, se tivesse coragem. Uma experiência interessante foi assistir "Brava gente brasileira", da diretora Lúcia Murat, sobre o qual iremos conversar.
Confesso a vocês que peguei o filme enganado. Pela semelhança do título, achei que fosse baseado no romance de João Ubaldo Ribeiro, "Viva o povo brasileiro". Resolvido o engano, descobri que o enredo do filme é baseado em um fato histórico, ocorrido no Mato Grosso do Sul, fronteira com o Paraguai, no final do século XVIII.
Em 1778, o cartógrafo português Diogo de Castro e Albuquerque (Diogo Infante) veio a serviço do governo lusitano para fazer o levantamento topográfico da região do Forte Coimbra, situado na margem direita do médio rio Paraguai. Além de problemas com os espanhóis, que dominavam todo o resto da América do Sul, a região era habitada pelos índios Paiaguás e Guaicurus. Estes últimos tinham um notável desenvolvimento, chegando inclusive a desenvolver a habilidade de domar e usar cavalos em incursões de guerra. Eram conhecidos como os índios cavaleiros.
A expedição que conduzia Diogo era comandada pelo Capitão Pedro, um impetuoso e violento soldado, que conduzia amigos e inimigos com a mesma truculência. No caminho para o Forte Coimbra, encontraram algumas índias banhando-se num rio. Numa prática que deve ter sido comum durante séculos a fio, os soldados capturaram e estupraram as índias, matando-as ao final.
Separando uma delas, Pedro a entrega a Diogo, para que prove aos homens que não é um "sodomita", termo pejorativo para homossexual. Perturbado pela febre e pelas privações da extenuante jornada, Diogo cede aos impulsos e violenta a jovem. Depois, atormentado pelo remorso, impede que Pedro a execute, levando-a junto com a expedição. O outro sobrevivente é um garoto branco, que teria sido raptado pelos índios.
Os dias que se seguem, já no forte, trazem a Diogo uma nova visão da vida. Longe da civilização e dos rígidos padrões morais e religiosos da Corte, Diogo inicia uma relação amorosa com a índia Ánote, com descobertas mútuas que surpreendem, deliciam e assustam o jovem português. A lembrança da noiva portuguesa, nobre, rica e virgem fica cada vez mais distante.
Enquanto os índios cavaleiros choram seus familiares mortos, Diogo e o comandante do forte tem os seus próprios problemas, enfrentando a discriminação da Igreja, que condena o relacionamento que estes mantém com mulheres indígenas. Diogo fica feliz ao descobrir que Ánote está grávida, sonhando que nasça uma pessoa com as melhores qualidades das duas civilizações.
Infelizmente para Diogo, os costumes e ódios ancestrais falam mais alto, e, o filho tão sonhado não vem. Logo em seguida, os índios usam um habilidoso ardil para invadir o forte, dizimando cinquenta e quatro ocupantes. Ainda se passariam doze longos anos antes que um acordo de paz fosse concretizado entre índios e portugueses.
O massacre ao estilo Cavalo de Tróia foi o fato real em que o roteiro foi baseado. A maior parte das filmagens foi feita no próprio Forte Coimbra, local até hoje de difícil acesso, onde a comunicação com o mundo resume-se a um solitário orelhão. O resultado final do filme reflete as dificuldades de produção, tanto logísticas como financeiras. Contudo, mesmo eventuais falhas do roteiro não tiram o brilho desta interessante produção.
De todos os personagens índios, apenas Luciana Rigueira, que vive Ánote, era uma atriz profissional. Todos os demais eram Kadiwéus, subgrupo dos Guaicurus originais. Nenhum deles tinha a menor noção de arte cênica, mas conseguiram interpretar a si próprios magnificamente.
Os Kadiwéus, que a princípio seriam só fonte de consulta, embasaram de forma decisiva o filme, seja nos hábitos, costumes e usos, como também influenciaram na forma como as cenas foram realizadas. A própria diretora reconhece que sentia que a forma que imaginara certas passagens ficava diferente quando era mostrada da forma "Kadiwéu". Em tempo: existem algumas cenas de nudez, mas nada que não possa aparecer no Globo Repórter ou Jornal Nacional.
O elenco profissional contou com o ator português Diogo Infante para o personagem homônimo, Leonardo Villar no papel do comandante, Luciana Riguera como Ánote, e um irreconhecível Floriano Peixoto, que viveu o transexual "Sarita", na novela "Explode coração"?, como o grosseiro Pedro. Sérgio Mamberti e Buza Ferraz fazem papéis secundários.
O enfoque mais discreto do filme é no grande embate entre as duas civilizações. É fato indiscutível que no encontro de duas civilizações diferentes, a mais poderosa sempre subjuga a mais fraca. Isso ocorreu entre os europeus e todos os indígenas, as potências mundiais e os países subdesenvolvidos e vai ocorrer com a Terra quando chegarem aqui os homenzinhos verdes de Alfa-Centauro. O que se mostra no filme, e isso sempre ocorre, é a fase em que o invasor ainda é fraco, e o autóctone ainda tem a ilusão que pode resistir e vencer.
Outro aspecto interessante é o posicionamento dos personagens como pessoas, com seus desejos, aspirações, qualidades e defeitos. Acresça-se a isso uma terra ao mesmo tempo paradisíaca e infernal, onde a sobrevivência de cada dia era uma vitória e será fácil entender o caráter brutal de todos, brancos ou índios. Talvez por isso o título em inglês tenha sido mais adequado: "Brave New Land", que não só exalta o lado selvagem das novas terras como lembra o título original da famosíssima obra de Aldous Huxley, "Brave new world", traduzido por aqui como "Admirável mundo novo".
Como seria de se esperar, a edição em DVD vem com a pobreza habitual das produções nacionais. O formato de tela é Full Screen e o áudio em português 2.0 e 5.1. As legendas estão disponíveis em francês, espanhol e inglês. O curioso é que em muitas cenas quando os índios conversam entre si, simplesmente não há legenda alguma e ficamos sem entender patavina! Como Extras, notas sobre elenco e diretora, trailer de cinema, notas de produção, making of, comentários em áudio da diretora, iconografia e galeria de fotos.
"Brava gente brasileira" nem de longe é a produção mais rica ou bem feita do cinema brasileiro. Contudo, na sua simplicidade consegue passar ao espectador mais um aspecto das raízes sociais, físicas e geográficas que resultaram na riquíssima cultura brasileira. Cultura essa que vem sendo dilapidada e "invadida" no inexorável processo de globalização. Isso até chegarem os homenzinhos verdes de Alfa-Centauro. Enquanto isso, vejam o filme, para reconstituir mais um pedacinho do mosaico multifacetado de nossa história.