quarta-feira, 25 de abril de 2018

Coluna Claquete - Filme da Semana: "João, o Maestro"




Newton Ramalho

 

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Filme da Semana: “João, o Maestro”

João, o invencível

Os vendedores de pacotes de TV por assinatura sempre sofrem comigo, pois quando oferecem “trocentos” canais de filmes, minha resposta é curta e grossa: não assisto filmes na TV. Quis o acaso que, ao fugir da programação dominical, eu parasse em um canal onde estava começando o filme “João, o Maestro”, de Mauro Lima. O controle remoto ficou de lado até rolarem os créditos finais.
O filme realmente me impressionou, não apenas pelo personagem central, um fenômeno da música erudita, mas também pela qualidade do produto. Além da direção de Mauro Lima, responsável por sucessos como “Meu Nome Não é Johnny” e “Tim Maia”, o filme conta com o suporte de gigantes do cinema nacional, Bruno Barreto, Luis Carlos Barreto e Cacá Diegues.
O curioso é que mal ouvi falar deste filme sendo exibido nos cinemas. Talvez porque nossa preferência seja por heróis-bandidos, como foi o caso das produções citadas acima. Embora Tim Maia e João Carlos Martins sejam exemplos de gênios da música, Tim foi pop enquanto Martins fez sucesso entre os amantes da música clássica mundial.
Um dos lados bons de “João, o Maestro” é mostrar com notável sinceridade alguns aspectos pouco “heroicos” do protagonista, como bebidas, mulheres e grande dificuldade de relacionamento com a família. Por outro lado, a história mostrada no filme traz um homem submetido a um calvário de dificuldades para fazer aquilo que mais gostava, e sua incrível capacidade de superação.
O filme segue uma narrativa linear, iniciando pela infância de João Carlos, quando algumas doenças e sua introversão o faziam ter uma vida diferente da dos próprios irmãos. Por outro lado, a influência do pai, um imigrante português amante da música e extremamente culto, direcionou-o para o que seria a sua grande paixão, o piano.
Se por um lado a influência do pai foi fundamental, as qualidades do próprio João Carlos superavam qualquer expectativa. Embora lesse partituras sem dificuldades, ele literalmente memorizava as músicas, não importasse quão complexas fossem.
O primeiro concerto internacional no Uruguai também representou a libertação sexual, e não demorou muito para que alcançasse sucesso mundo à fora, o que facilitou uma proposta para morar em Nova York.
Foi nesta cidade que sofreu o primeiro grave revés de sua vida, ao sofrer uma queda que o fez perder o movimento de três dedos da mão direita. A garra e determinação fizeram com que superasse o problema, mas outros acontecimentos o poriam à prova novamente.
Além de uma história magnificamente contada, o filme tem qualidades que o diferenciam muito do tradicional cinema brasileiro da atualidade. Além de uma perfeita recriação de época, a edição do filme é perfeita, e a trilha sonora deslumbrante, quase toda com gravações de performances do próprio João Carlos.
O elenco é um show à parte, principalmente dos quatro atores que interpretam o protagonista, com destaque para Alexandre Nero, ao qual compete interpretar a fase mais complexa da vida do personagem. Em papéis secundários, Caco Ciocler, Alinne Moraes e Fernanda Nobre ajudam a compor o ótimo elenco.
Apesar da fraca distribuição, “João, o Maestro” é um ótimo filme, fruto de uma escola de cinema que já esteve entre as melhores do mundo. O filme já está sendo exibido nos canais de assinatura, mas pode ser facilmente encontrado através dos serviços de internet.
No final do filme há uma participação do próprio João Carlos em uma performance emocionante. Aguarde os créditos, pois são exibidas várias imagens da vida do músico, além de informações adicionais sobre sua obra.

Título original: “João, o Maestro”


segunda-feira, 16 de abril de 2018

Coluna Claquete - Filme da Semana: "Nascido Para Matar"





Newton Ramalho

 

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Filme recomendado: “Nascido para Matar”

Nascido para endoidar...

Eu queria encontrar pessoas estimulantes e interessantes de uma civilização antiga e matá-los. Eu queria ser o primeiro garoto do meu quarteirão a conseguir uma morte confirmada...
Entrevista do recruta Joker à equipe de televisão

A notícia da morte de R. Lee Ermey no último 15 de abril me levou a refletir sobre o mais famoso filme que participou, “Nascido Para Matar” (“Full Metal Jacket”, EUA, 1987). Ermey fez o inesquecível Sargento Hartman, figura chave na primeira parte, e onde usou muito de sua experiência pessoal no corpo de fuzileiros americanos.
A questão que me veio à mente foi: será que o mundo mudou da época do Vietnã para cá? A verdade é que, após um período de distensão com a queda do Muro de Berlim, e o fim do comunismo, o mundo parece ter entrado em um lamaçal de intolerância só equivalente ao crescimento do nazismo nos anos 30.
Em meio aos noticiários de matança de civis na Síria, atentados terroristas em vários lugares, incompreensão total com a situação dos refugiados, e guerras por todos os lados, este filme parece muito apropriado para revisitar. É um dos melhores trabalhos de Stanley Kubrick, que fala sobre a guerra do Vietnã.
A guerra, que é pano de fundo para o filme, ocorreu no Vietnã, entre o fim dos anos sessenta, e, começo dos setenta. Antiga colônia francesa, chamada Indochina, o país travou uma sangrenta luta de libertação com a França, entre 1946 e 1954, depois de quase um século de ocupação. Além de ter perdido a colônia, a França ainda teve cem mil soldados mortos, e, cento e quinze mil feridos. O Vietnã foi então dividido em dois, ficando o Norte na influência comunista, e, o Sul, apoiado pelos Estados Unidos.
A partir de 1961, devido à fraqueza e a corrupção do totalitário governo de Ngo Dinh Diem, os americanos começaram a participar, além de armamentos, como “consultores militares”. De mero argumento da campanha de Kennedy (que seria convenientemente “esquecido” após uma mais que provável reeleição), virou ponto de honra para o governo de Lyndon Johnson, após a morte do seu carismático antecessor.
Entre 1965 e 1973, houve participação ativa do exército americano no Vietnã, chegando a 2,7 milhões de jovens americanos. Morreram 57.939 soldados dos Estados Unidos, 180.000 sul-vietnamitas, e, 900.000 norte-vietnamitas, entre soldados e civis. Mais de um milhão de crianças ficaram órfãs, e, os soldados americanos deixaram cerca de 200.000 crianças ilegítimas para trás. Em 1975, foi selada a vitória, com a reunificação do país.
Os grandes responsáveis pela vitória vietnamita foram os vietcongues, que utilizaram com sucesso táticas de guerrilha na selva nunca antes observadas em guerras tradicionais. Os guerrilheiros chegaram a escavar uma malha de túneis com mais de trezentos quilômetros.
Muitos filmes foram feitos sobre a guerra do Vietnã, mas a maioria não passa de fantasia, de quem quer ganhar, no cinema, o que foi perdido na vida real. Geralmente são filmes de segunda linha, como os Bradock’s de Chuck Norris e outros do gênero. Os mais interessantes, são os que encaram o conflito pela ótica de quem estava na linha de frente. Podem ser citados “Platoon”, “Apocalipse Now”, “Franco-Atirador”, “Amargo Regresso”, e, entre os bons exemplos, “Nascido Para Matar”.
Este filme foi realizado em 1985, dez anos após o término do conflito. “Nascido Para Matar” foi dirigido e produzido por Stanley Kubrick, que também escreveu o roteiro, junto com o autor da história original, Gustav Hasford. Hasford foi fuzileiro, e, serviu no Vietnã como correspondente de guerra. Sua vivência pessoal permitiu criar o protagonista, recruta Joker (Matthew Modine).
O filme de Kubrick é dividido em dois atos. Na primeira parte, é mostrada a fase de treinamento dos recrutas, na ilha Parris, onde um curso de seis semanas os tornaria aptos a partirem para o front. O treinamento, que não deve ser muito diferente em exército nenhum do mundo, transforma seres humanos, normais, e, alienados, em máquinas de matar, verdadeiros zumbis, prontos a entrar em ação, a partir da ordem do superior.
Para fazer isso, os recrutas contaram com o auxílio do “simpático” sargento Hartman, vivido pelo recém-falecido R. Lee Ermey, que foi realmente instrutor de um campo de recrutas, e lutou no Vietnã. Hartman submetia o grupo e principalmente o moleirão Leonard (Vincent D’Onofrio), que ganhou do sargento o apelido de Gomer Pyle, um personagem humorístico da tv americana,  a uma pressão intolerável. A loucura do treinamento foi expressada na loucura do recruta, numa recriação da imagem de Frankenstein.
A segunda parte do filme passa-se no Vietnã. Entre a convivência com um povo (literalmente) prostituído pelos americanos, e, a luta contra um inimigo invisível, a preocupação era uma só: conseguir voltar para casa inteiro. O clímax desse ato passa-se num vilarejo abandonado onde um franco-atirador põe toda a companhia em pânico. É a loucura da guerra, traduzida na soma das loucuras individuais.
O elenco está muito bom, não apenas Modine, o já citado Ermey, e Vincent D’Onofrio, que em seu primeiro papel importante no cinema faz uma fantástica caracterização como o frágil Gomer Pyle. É dele, a citação que dá o título original ao filme: full metal jacket. Para os leigos em armamentos, full metal jacket é o tipo de projétil utilizado pelo exército, onde a ponta é revestida por um metal duro, com alma de chumbo, dotada de grande poder de perfuração.
As edições em DVD e Blu-Ray, apesar de trazerem o filme com ótima qualidade de som e imagem, não trazem os ótimos documentários sobre o filme. Esses documentários estão agrupados em um disco que fazia parte de uma coletânea sobre o conjunto da obra de Kubrick. Num deles, sobre o trabalho de R. Lee Ermey, descobrimos que ele tinha sido contratado apenas como consultor, mas Kubrick gostou tanto dele que o convidou para fazer parte do elenco.
No mundo pós 11 de setembro, há uma vigorosa semelhança entre o antigo Vietnã e os atuais Iraque e Afeganistão, e tantos outros lugares onde os americanos se intrometem, com prepotência e agressividade, que apenas geram mais ódio. “Nascido para Matar” tem seu valor, por mostrar que qualquer guerra é uma soma de loucuras. Políticas, ideologias, ambições ou fanatismos, a coisa resume-se numa simples conclusão filosófica: guerra é coisa de doido!

 

segunda-feira, 9 de abril de 2018

Coluna Claquete - Filme da Semana: "A Longa Caminhada"





Newton Ramalho

 

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Filme da Semana: “A Longa Caminhada”

A Pré-História encontra a Civilização

Não é de hoje que expresso minha admiração pelo cinema australiano, antes mesmo de sucessos mundiais como “Mad Max” e “Priscilla – A Rainha do Deserto”. Além de um grau de ousadia impensável para a hipócrita Hollywood, o cinema australiano desde sempre prima pela técnica fotográfica – e ajuda bastante a exuberância de paisagens, fauna e flora daquele exótico país. Todas essas características estão presentes em “A Longa Caminhada” (“Walkabout”, 1971, AUS).
Este filme é baseado no livro The Children, escrito pelo inglês James Vance Marshall, que também é autor de três outros livros que foram transformados em filmes: “Santa Fé” (“Santa Fe”, 1951), “A Ilha do Topo do Mundo” (“The Island at the Top of the World”, 1974) e “O Menino e a Foca Dourada” (“The Golden Seal”, 1983).
O livro The Children, publicado pela primeira vez em 1959, com apenas 125 páginas, narra a incrível jornada de dois irmãos, sobreviventes de um desastre aéreos, e que são ajudados por um jovem aborígene. No livro, Vance faz uma primorosa descrição do deserto, suas características principais, fauna e flora, além de explorar com perfeição o choque entre as culturas.
Curiosamente, este foi um dos poucos casos em que a versão cinematográfica ficou ainda melhor que a história original. Além de transformar em imagens e sons toda a riquíssima descrição da natureza que o livro continha, o filme roteirizado por Edwar Bond e dirigido por Nicolas Roeg conseguiu ir mais além, explorando uma tensão sexual entre os personagens.
O título se refere à jornada obrigatória que todo jovem de sua tribo tinha que fazer, vagando durante meses no deserto australiano, e dependendo apenas de seus próprios recursos para sobreviver.
No filme, a adolescente Mary (Jenny Agutter) e seu irmão de seis anos, Peter (Luc Roeg) se perdem no deserto depois que o pai tem um acesso de loucura e tenta matá-los, depois de dirigir sem rumo até acabar o combustível.
Fugindo desesperadamente para salvar suas vidas, os irmãos caminham pelo deserto australiano sem a menor ideia de onde estavam, ou para onde deveriam seguir. Garotos urbanos de classe média, eles não tinham noção de como sobreviver num ambiente tão hostil.
O acaso os faz encontrar com um aborígene (David Gulpilil), também adolescente, que nunca havia visto uma pessoa branca na vida. Apesar da dificuldade de comunicação, ele entende que os dois não conhecem nada do deserto, e os toma sob sua responsabilidade. O trio empreende uma longa jornada através do deserto, enfrentando as dificuldades naturais, e fazendo um aprendizado mútuo.
O filme apresenta algumas diferenças em relação ao livro, reordenando alguns eventos que tornaram a história mais fluida e coerente. Além disso o roteirista acrescentou, de uma forma sutil e delicada, uma crescente tensão sexual perfeitamente crível, já que se tratava de dois adolescentes em pleno despertar da sexualidade.
Contudo, mesmo com algumas cenas de nudez não há nada que possa ofender a sensibilidade de alguém. Nesse aspecto, o filme foi bem ousado ao mostrar a nudez dos jovens atores, o menor deles filho do próprio diretor. Na verdade, embora tivessem aparência de serem mais jovens, tanto Jenny Agutter quanto David Gulpilil já tinham mais de dezoito anos à época do filme.
Depois deste filme, os jovens prosseguiram suas carreiras no cinema. Luc Roeg dedicou-se à produção de filmes, e já tem uma extensa carreira, inclusive com o filme “Precisamos Falar Sobre o Kevin”. David Gulpilil, embora limitado aos papéis de aborígene, tem muitas atuações no cinema e na TV, como “Os Eleitos – Onde o Futuro Começa”, “Crocodilo Dundee”, “Austrália” e o ótimo “Geração Roubada”.
Jenny Agutter, que iniciou sua carreira aos doze anos de idade, também participou de muitos filmes famosos, como “Fuga no Século 23”, “Um Lobisomem Americano em Londres”, “Darkman – Vingança Sem Rosto”, “The Avengers: Os Vingadores”, “Capitão América 2: O Soldado Invernal” e “Rainha do Deserto”.
Mas, além da história interessante, com o evidente choque de culturas, o filme encanta com as belíssimas locações, detalhes preciosos da fauna australiana, e a belíssima trilha sonora de John Barry, que dá um impacto extra às diferentes etapas do filme. É possível ver dromedários selvagens, cangurus, coalas, ornitorrincos e muitos outros animais, alguns com aspecto pré-histórico.
Também foram inseridas algumas situações que não estão no livro, mostrando o gritante contraste entre o ambiente primitivo e mundo científico. Não poderia faltar também uma visão crítica sobre como o homem branco se relacionava com os aborígenes – à época do filme ainda existia uma política de estado para a miscigenação forçada, que só seria abolida em 1975.
“A Longa Caminhada” é um filme interessante sob vários aspectos, não só mostrando o choque de culturas, mas também como exemplo de uma escola de cinema excepcional, capaz de produzir várias pequenas obras-primas.

Título original: “Walkabout”