segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Coluna Claquete – 30 de janeiro de 2017 - Filme da Semana: "Até o Último Homem"





Filme da Semana: “Até o Último Homem”

Entre as centenas de filmes sobre a Segunda Guerra Mundial, sempre acompanhamos os feitos heroicos daqueles que mataram mais ou destruíram mais. É gratificante ter uma visão diferente de herói, de alguém que procurou salvar mais, e que teve que lutar contra os seus pares para viver de acordo com os seus valores. Esta é a história de “Até o Último Homem” (“Hacksaw Ridge”, 2016), dirigido por Mel Gibson, em cartaz nos nossos cinemas.
Embora hoje seja compreensível que alguém faça parte de um exército mas se recuse a matar por questões religiosas ou de consciência, isso parecia escandalosamente absurdo nos Estados Unidos, em plena Segunda Guerra Mundial, quando o jovem Desmond Doss (Andrew Garfield) ousou desafiar os seus oficiais com estas convicções.
Doss representava um caso extremamente raro, pois numa época onde todos eram inflamados pela propaganda bélica e o culto do ódio ao inimigo, recusar-se a tocar em uma arma parecia um ato covarde e mesmo de completa insanidade.
Mas, além da questão religiosa, Desmond vivera desde cedo as piores experiências ligadas à violência. O pai, Tom Doss (Hugo Weaving), um veterano da Primeira Guerra Mundial, nunca vencera os traumas dos dias de batalha na França, onde vira os melhores amigos serem mortos em uma guerra sem sentido. Os filhos cresceram sendo surrados pelo pai por qualquer motivo, enquanto viam a mãe sofrer com a violência doméstica. Tudo isso fez Desmond querer tornar-se um home diferente do pai.
Ninguém conseguia entender o seu senso de patriotismo, a paixão pela medicina e a vontade de ajudar os outros. Mais que isso, os oficiais instigavam os companheiros de quartel a infligir uma disciplina própria, castigando Doss por ser tão diferente.
Sustentando sua convicção até o fim, mesmo correndo o risco de prisão numa corte marcial, Doss recebe a ajuda da fonte mais improvável, o próprio pai, que buscou a ajuda de um antigo companheiro da Primeira Guerra. Só assim ele pôde receber o treinamento de socorrista e sem a obrigação de portar armas.
Vencida esta batalha, era hora de enfrentar a guerra real. Junto com os colegas ele foi enviado para o Pacífico, onde o Japão dominava grande parte das ares estratégicas. Ao longo de três anos de guerra, sua atuação nos campos de batalha foi sempre corajosa e de grande valia para seus pares, a ponto de receber duas Estrelas de Bronze por bravura nas batalhas nas Filipinas.
O filme, porém, foca a atenção no que seria a mais brilhante participação de Doss em sua carreira no exército. Em 1945, o Japão já tinha sido forçado a recuar da maioria dos territórios invadidos, e agora via-se obrigado a defender-se dentro das próprias fronteiras.
A ilha de Okinawa, no sul do Japão, é uma das maiores ilhas do arquipélago. Tanto os japoneses quanto os aliados sabiam que a ilha era crucial para poder invadir o país, de modo que a população civil foi evacuada, e montou-se um fortíssimo esquema defensivo. Há dois ótimos filmes sobre esta fase da guerra, ambos dirigidos por Clint Eastwood: “A Conquista da Honra” e “Cartas de Iwo Jima”.
Foi este momento crucial da guerra do Pacífico que Doss e seus companheiros enfrentaram ao chegar na ilha. Embora já tivessem enfrentado os japoneses nas Filipinas, onde contavam com o apoio da população, agora a situação era bem diferente.
Num território inóspito, de difícil acesso, era preciso subir uma enorme falésia para aceder à posição mais favorável. Lá em cima, mesmo submetidos a intensos bombardeios da marinha americana, os defensores estavam protegidos em cavernase passagens subterrâneas, a maioria delas cavadas pelos próprios soldados japoneses.
Naquela altura da guerra, os soldados japoneses eram formados por pessoas inexperientes, reservistas ou jovens, pois todos os anos de guerra já haviam tomado a vida de muitos soldados antigos. Contudo, todos eles tinham a determinação de lutar até a morte pelo Imperador e pela causa que consideravam ser sagrada.
As batalhas eram verdadeiras carnificinas, e os atacantes ainda tinham a desvantagem de ter suas bases na praia, muito abaixo do planalto onde combatiam. Com isso, após cada batalha era necessário recuar, e quem não conseguia fazer isso com suas próprias forças ficava à mercê dos japoneses, que varriam o front para matar os inimigos feridos que encontrassem.
Embora Doss tivesse partilhado lado a lado com os colegas em todos os momentos de batalha, ele recusou-se a recuar e deixar os companheiros feridos abandonados em campo. Sozinho, e escondendo-se dos soldados japoneses, ele coletava os feridos, um a um, e levava para a beira do penhasco, onde os descia com o auxílio de uma corda. Apenas em uma noite ele resgatou 75 companheiros que estariam condenados à morte sem a sua ajuda. Doss resgatou até dois japoneses, mas o pessoal que recolhia os feridos embaixo não tinha o mesmo nível de compaixão dele.
O elenco está muito bem, o que reflete o trabalho direto de Gibson, destacando-se o próprio Andrew Garfield, que personifica o próprio caipira inocente e fervoroso, além da breve mas sempre eficiente atuação de Hugo Weaving, que mais uma vez mostra a sua versatilidade como o traumatizado pai de Doss.
A escolha do tema é uma agradável surpresa em tempos tão intolerantes, ainda mais com a direção de Mel Gibson, que tem uma enorme coleção de filmes violentos no currículo. Contudo, este mesmo Gibson é católico ligado a uma ala bem radical da Igreja, e não é difícil associá-lo ao personagem central deste filme, mesmo que Doss fosse adventista.
“Até o Último Homem” é um filme interessante, mostrando um aspecto pouco conhecido da Segunda Guerra Mundial, e que certamente agradará ao grande público, embora seja bom ter ciência de que algumas cenas podem chocar pelo realismo brutal. Não saia imediatamente, durante os créditos são exibidos alguns depoimentos das personagens reais, inclusive o próprio Desmond Doss. Recomendo. 

Título Original: "Hacksaw Ridge"

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Coluna Claquete 02/01/2017 - Especial: As mil faces de Sherlock Holmes



Especial: As mil faces de Sherlock Holmes

Os meus leitores mais assíduos estão habituados a ler nesta coluna matérias sobre cinema, e pouco sobre televisão. Resolvi abrir uma exceção, não só pela escassez de bons títulos nos cinemas, mas, também, para falar de dois seriados que tem como protagonista um dos meus heróis favoritos, nada menos que Sherlock Holmes. As séries são “Sherlock”, da BBC de Londres, e a americana “Elementary”, ambas em exibição.
É curioso como um herói criado no final do século 19 não só tenha feito um sucesso extraordinário em sua época, como ainda influenciou gerações, e inspira muitas obras atuais. Para se ter ideia, o site IMDB lista 287 obras do cinema e televisão inspiradas no personagem. Seriados como Monk e House são inspirados na imagem e personalidade de Holmes.
Sherlock Holmes apareceu pela primeira vez no romance “Um estudo em Vermelho”, escrito pelo médico Sir Arthur Conan Doyle, e publicado originalmente pela revista Beeton's Christmas Annual, em novembro de 1887. Em fevereiro de 1891, o romance “O Signo dos Quatro” foi publicado em outra revista, Lippincott’s Magazine . Em junho de 1891, Holmes estreia na Strand Magazine no conto “Um Escândalo na Boêmia” . O conto obteve tanto sucesso que garantiu publicações na revista até 1927.
Apesar do sucesso de sua criação, Conan Doyle não gostava muito dele, pois considerava a literatura policial uma arte menor. Ele chegou a “matar” Holmes em “A Aventura Final”, quando o detetive e seu arqui-inimigo Moriarty desaparecem em uma catarata na Suíça. Os protestos do público foram tamanhos que o autor foi obrigado a “ressuscitar” o personagem. Melhor para os leitores, pois dessa segunda fase veio o romance “O Cão dos Baskervilles”, uma das obras mais famosas com o detetive.
Vários artigos, contos, peças teatrais, filmes e séries vieram ao público ao longo do século 20. Entre os mais marcantes estão as interpretações de Basil Rathbone, em filmes de 1939 a 1946, e de Jeremy Brett, na série da Granada Television, de 1984 a 1994. Algumas marcas icônicas de Holmes, como o cachimbo recurvo, o boné de duas abas, e a frase “Elementar, meu caro Watson” vieram destas adaptações, pois nunca existiram nos livros de Doyle.
Todas as histórias de Holmes são marcadas pela dualidade do detetive arrogante, pouco dado a relações pessoais, e uma incrível capacidade mental, tendo como testemunha o fiel John Watson, um médico veterano da guerra da Criméia, que servia de cronista para as aventuras do herói.
Sendo leitor assíduo das aventuras de Sherlock Holmes desde criança, graças a uma coleção herdada de meus pais – e que conservo até hoje - muitas vezes torço o nariz para algumas adaptações que considero desrespeitosas para com a imagem do “meu” Holmes, aquele que criei em minha imaginação.
Eu poderia citar como exemplos as versões cinematográficas de Guy Ritchie, “Sherlock Holmes” e “Sherlock Holmes – Jogo das Sombras”, onde Robert Downey Jr. atua como Holmes e Jude Law como Watson. Apesar de gostar dos dois atores, e de a história passar-se na época original retratada nos livros, os personagens são outros, não os que o leitor de Doyle poderia imaginar. Uma sequência era prevista para 2016, mas não se concretizou.
Mas, quando tive a oportunidade de assistir o primeiro episódio de “Sherlock”, seriado da BBC de 2010, onde Benedict Cumberbatch dá vida a Holmes, a sensação é muito diferente. O seriado inglês tem apenas três episódios por temporada, mas, cada um deles tem uma hora e meia de duração, funcionando mais como um filme.
As histórias acontecem nos dias atuais, e o excêntrico Sherlock Holmes (Cumberbatch) divide o apartamento com John Watson (Martin Freeman), um médico do exército inglês traumatizado pela experiência da guerra no Afeganistão.
Apesar de acontecer num mundo moderno, todos os episódios são baseados nas histórias originais de Doyle, mantendo fidelidade principalmente no que concerne à personalidade dos principais personagens.
Como a maioria das produções da BBC, a serie é primorosa, com produção equivalente à do cinema, histórias muito bem escritas e encenadas, e os dois atores principais são agora estrelas de primeira grandeza: Cumberbatch estrelou recentemente “Doutor Estranho”, enquanto Freeman foi o personagem título da trilogia “O Hobbit”.
Devido ao enorme sucesso da primeira temporada, em 2010, “Sherlock” teve uma segunda e uma terceira temporada, também de três episódios, exibidas em janeiro de 2012 2014, respectivamente. Em 2016 foi exibido um único episódio, “The Abominable Bride”, onde os personagens vivem em 1890. A quarta temporada estreia agora em janeiro de 2017, com os episódios “The Six Tatchers”, “The Lying Detective”, e “The Final Problem”.
O seriado “Elementary” segue por outra vertente, mas, não menos interessante. Sherlock Holmes (Jonny Lee Miller) acaba de sair de uma clínica de recuperação de viciados em drogas, e a doutora Joan Watson (Lucy Liu) é contratada para acompanhá-lo no período de recuperação.
Mas, o que ela não esperava é que ele tivesse como principal atividade a de consultor da polícia de Nova York, onde vivem. Aos poucos, ela começa a entender e envolver-se no que ele faz, a ponto de ele decidir tomá-la como sua sócia. Aqui também foram mantidas as características dos principais personagens, embora nomes, situações e eventos dos livros sejam mostrados de forma diversa.
Diferentemente da série inglesa, “Elementary” teve a primeira temporada com 22 episódios de 40 minutos, e o último com 90. Atualmente o seriado está em exibição da quinta temporada, sendo mantidos os mesmos atores. Além de Miller e Liu, também se destacam Aidan Quinn e Jon Michael Hill, como oficiais da polícia de NY.
As duas séries citadas já foram lançadas em DVD/Blu-Ray, a menos das temporadas ainda em exibição na TV. É importante perceber que são formatos diferentes, que talvez atraiam públicos também diferentes, sendo o inglês mais para os cinéfilos, enquanto o americano mais para o espectador habituado com seriados com episódios curtos e variados.
Embora a percepção do herói seja diferente para cada um, estas produções trazem um frescor ao personagem, posicionando-o num ambiente moderno, mas, mantendo uma razoável fidelidade que certamente agradaria Conan Doyle, mesmo que este não gostasse do fato de sua criação ter se tornado maior que ele próprio.