sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Coluna Claquete - Artigo: Cinema, História e pseudo-história




Como cinéfilo que sou, sempre considerei o cinema uma excelente ferramenta para complementar a educação formal. Afinal de contas, visualizar um acontecimento histórico com imagens em ação, músicas, diálogos sonoros, efeitos especiais e tantas outras possibilidades que o cinema oferece é uma ótima maneira de despertar e manter a atenção, ajudar a memorização, e, principalmente, despertar o senso crítico das pessoas.
Exatamente por pensar assim, fico indignado quando vejo um filme apresentar um fato histórico de forma distorcida, incompleta, ou inverídica. Fico imaginando o porquê de se gastar milhões – normalmente, dólares – e exibir mundialmente um filme com pouca ou nenhuma contribuição à veracidade dos fatos.
Não foram poucas as vezes em que sofri esta decepção, sendo a mais recente com o filme “Dunkirk”, de Christopher Nolan. Este diretor, que nos brindou com as magníficas ficções-científicas “Interestelar” e “A Origem”, a série Batman Begins e o enigmático “Amnésia” parece ter tido dificuldades ao lidar com eventos reais.
A retirada de Dunquerque ( Dunkirk, em inglês, e Dunkerque, em francês) foi um dos eventos mais importantes e decisivos da Segunda Guerra Mundial. Ainda no início da guerra, quando só os países europeus estavam envolvidos, a nova estratégia alemã de blitzkrieg surpreendeu ingleses e franceses com a invasão do território francês através da Holanda, ignorando a obsoleta linha Maginot.
O avanço alemão era rápido e implacável, com dez divisões blindadas, com moderníssimos tanques Panzer, e 117 divisões de infantaria. As tropas inglesas que tinham vindo ajudar os franceses foram obrigadas a recuar para uma estreita faixa de terra na cidade de Dunquerque, prevendo-se uma aniquilação das tropas ou rendição total. Por razões nunca explicadas, o ataque alemão foi refreado por seu alto comando, o que favoreceu um plano de retirada dos soldados ingleses.
A decisão da retirada envolvia muitos riscos. Se por um lado havia a possibilidade de perder centenas de milhares de soldados, a logística para resgatá-los também era muito arriscada, pois os navios eram presas fáceis para os submarinos e aviões inimigos.
Na Inglaterra houve uma grande discussão no nível político, pesando de um lado a preservação das tropas, e do outro a preservação dos recursos. Por fim, prevaleceu a ideia de recuperar os homens, que seriam extremamente necessários em caso de invasão alemã à Inglaterra.
As perdas aliadas foram grandes, com seis navios de guerra ingleses e três franceses, além de muitos homens que morreram na praia, aguardando a vez de embarcar. No período de 27 de maio a 4 de junho de 1940, a força aérea britânica perdeu 177 aviões contra 132 dos alemães. Em compensação, neste mesmo período foram evacuados 338 mil soldados, britânicos e franceses, que depois seriam utilizados na contraofensiva dos anos seguintes.

Nolan, além de não fornecer uma contextualização correta, focou a atenção em alguns soldados, que representaram o oposto do que ocorreu na realidade. Enquanto o que mostrou foi um punhado de soldados indisciplinados que tentavam a todo custo burlar a fila de embarque, o que se viu na Dunquerque real foram tropas que enfrentaram com coragem e paciência os dez dias da operação, mesmo com fome, frio, e submetidos ao constante bombardeio alemão.
Para quem quiser saber mais sobre a realidade dos fatos, recomendo o ótimo documentário da BBC, “Dunkirk”, produzido em 2004, e facilmente encontrado na internet. Nele não apenas os fatos são apresentados de forma linear, com uma cronologia bem determinada, mostrando os bastidores na Inglaterra e França, além dos eventos no campo de batalha, inclusive a heroica participação de pescadores civis no resgate dos soldados..
O filme de Nolan, por sua vez, traz uma cronologia confusa, sem contextualização dos fatos, uma edição confusa, que é mais atrapalhada pela trilha sonora, que se mantém contínua mesmo quando há uma mudança significativa de eventos. Parece que a edição foi feita por um amador, que além de tudo fumou alguma coisa estragada.
Continuo ainda com a mesma dúvida: porque gastar milhões para apresentar uma visão distorcida da História? Claro, sempre haverão os que defendem que a interpretação da História é livre. Interpretação é uma coisa, mostrar fatos distorcidos é bem diferente.
O uso do cinema como propaganda política não é novidade, principalmente antes da chegada da televisão. Todos os governos usavam essa tática, sempre mostrando o seu lado de uma forma positiva, e o inimigo de maneira totalmente negativa. Maior desserviço ainda é quando cineastas famosos como Quentin Tarantino “criam” uma realidade alternativa com filmes como “Bastardos Inglórios”, onde Hitler e seu comando geral foram mortos em um cinema. O inverso ocorre com gênios como Charlie Chaplin, que usavam a paródia para denunciar aquilo que os outros se recusavam a ver, como “O Grande Ditador”, de 1940.
Ainda continuo entusiasta do uso do cinema como suporte para a educação, mas, como tudo no mundo, mais do que nunca é preciso ter visão crítica, analisar os fatos sempre apoiado em uma contextualização histórica, e tentar tirar daí uma conclusão que nos ajuda a criar um mundo melhor. Um mundo com História, não pseudo-histórias.