quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Coluna Claquete - Filme da Semana: "A Esposa"



Newton Ramalho

  

Filme da semana: “A Esposa”

 

Vida nas sombras




Por trás de um grande homem, há sempre uma grande mulher. Este dito popular, aparentemente simpático, ainda expressa uma forte carga do machismo tão presente em quase todas as sociedades do mundo. E é baseado nesse machismo que o diretor Björn Runge nos traz o ótimo filme “A Esposa” (“The Wife”, EUA, 2017). O papel-título é vivido por Glenn Close, que por ele foi indicada ao Oscar 2019 de Melhor Atriz.
Nos dias atuais, Joan (Glen Close) é a esposa de Joe Castleman (Jonathan Pryce), um renomado escritor. Os dois são surpreendidos numa madrugada por um telefonema da Suécia, onde alguém os informa que Joe foi agraciado com o prêmio Nobel de Literatura.
Passado o choque inicial, o casal comemora a notícia com os filhos Susannah (Alix Wilton Regan) e David (Max Irons), e o círculo de amigos mais próximos. Joe, em seu discurso, faz questão de elogiar o apoio da família, em especial o de Joan, que está com ele há quatro décadas.
Como Susannah está prestes a ter um bebê, apenas David irá acompanhar os pais à cerimônia de premiação. David também tem sonhos de ser escritor, mas a fama do pai, e a própria relação dos dois dificulta o seu progresso.
Aos poucos, porém, o espectador descobre que existem alguns distúrbios naquela família aparentemente perfeita. Além da relação difícil com o filho, Joe periodicamente comete infidelidades, atos que Joan finge não ver. Na verdade, a própria relação dos dois começou com uma infidelidade, já que Joe (Harry Lloyd) era casado quando iniciou um romance com Joan (Annie Starke), sua aluna na época.
Essa atitude pode parecer estranha, pois Joan desde sempre fora uma mulher inteligente e independente. Mas, além do machismo dominante na época, onde aventuras extraconjugais eram toleradas – para os homens -, ela sabia que o poder de sedução de Joe não se restringia ao físico, mas ao seu domínio das palavras e da literatura.
Muitos anos depois, durante a viagem à Suécia, para Joe pouca coisa mudou, mas para Joan, a taça parece estar a ponto de transbordar. Além de estar sempre relegada a um segundo plano, Joan percebe que o marido continua à cata de aventuras, enquanto a relação com o filho vai de mal a pior.
E para complicar ainda mais as coisas, Joan se vê assediada por um insistente repórter, Nathaniel Bone (Christian Slater), que parece conhecer coisas que ela preferiria que jamais fossem discutidas, como o próprio talento dela para a literatura.

À medida que a prestigiosa premiação se aproxima, as tensões aumentam, e através das memórias da esposa o espectador vai descobrindo a raiz de todos os males. Um evento trágico fará com que tudo tenha que repensado.
Apesar do título e da atuação fantástica de Glenn Close, este é um filme sobre o machismo. Embora tenha havido uma grande evolução para a igualdade entre homens e mulheres, ainda há muito a percorrer. E, se hoje mesmo estamos presenciando homens (e mulheres) machistas ocupando altos cargos políticos, imaginem o mundo décadas atrás. Através de flashbacks o espectador é informado sobre os preconceitos que imperavam no mercado de literatura.
“A Esposa” foi magnificamente transposta do livro homônimo de Meg Wolitzer para as telas, embora seja fortemente baseado nos diálogos e atuação do elenco. Não é difícil imagina-lo como uma peça de teatro, já que dispensa recursos cinematográficos indispensáveis em outros gêneros.
E falando-se em atuação, não resta dúvida de que este é o filme de Glenn Close. Esta grande dama de 72 anos emana uma beleza totalmente diferente de seu papel mais famoso, a sensual e desvairada Alex de “Atração Fatal” (“Fatal Attraction”, EUA, 1987). Esta é a sétima indicação de Glenn Close ao Oscar, e esperemos que desta vez a Academia faça justiça ao indiscutível talento da atriz.
“A Esposa” é um dos melhores filmes dramáticos dos últimos anos, não apenas por tratar de relacionamentos familiares complexos, como também denunciar o machismo que continua extremamente presente em todo o mundo, mesmo nas sociedades ditas avançadas.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Coluna Claquete - Filme recomendado: “O Pacto dos Lobos”

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Newton Ramalho
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Filme Recomendado: "O Pacto dos Lobos"


Sobre homens e monstros



Porque alguém juntaria índios lutadores de kung-fu, nobres conspiradores e ambientes de serial killers, para contar a misteriosa história de um monstro que assolou a França no século dezoito? Se fosse para fazer um relato histórico seria impossível, mas cinema dispensa rigor acadêmico, e pode usar a licença poética que os autores acharem necessários para tornar o relato interessante.
Foi assim que o diretor Christophe Gans criou “O Pacto dos Lobos” (“Le pacte des loups”, FRA, 2001), um filme com muita ação e aventura, um bonito elenco, locações fantásticas e uma história intrigante, sobre um mistério real que até hoje não foi totalmente esclarecido.
Na França de 1764, quando a realeza ainda estava firme e forte, a notícia de uma Besta assassina, que matava e mutilava aldeões, principalmente mulheres e crianças, levou o rei Luís XV a enviar um emissário especial, o Cavaleiro Grégoire de Fronsac (Samuel Le Bihan). Este nobre, acompanhado do misterioso Mani (Mark Dacascos), um índio Mohawk, chegou a Gévaudan, uma aldeia no interior sul do país, onde estavam ocorrendo os ataques.
Fronsac era um homem de muitas qualificações: jardineiro, naturalista, curandeiro, taxidermista e intelectual, entre outras coisas úteis para a França do século 18. Sua missão era capturar a misteriosa fera, que para uns era um lobo, para outros um monstro, ou talvez o próprio demônio. Fosse o que fosse, a Besta parecia conseguir sempre fugir, sem nem ao menos ser identificada pelos poucos sobreviventes.
Lançando-se à caça do misterioso animal, o Cavaleiro conhece notáveis personagens locais, como o rancoroso Jean-François (Vicente Cassel), que perdera um braço na África, sua bela irmã, Marianne (Emilie Dequenne), e a sensual prostituta Sylvia (Mônica Bellucci). Aos poucos, vai descobrindo que existe uma rede de intrigas que se estende desde a Roma papal até a corte da França, com epicentro na pequena Gévaudan.
Pouco se sabe até hoje sobre a Besta de Gévaudan, mesmo no resto da França. Mas, o monstro realmente existiu, e fez mais de cem vítimas entre 1764 e 1767, nas regiões rurais de Auvergne e Dorgogne. Tudo isto está documentado nos livros oficiais das prefeituras destes lugares, com relatos das testemunhas sobreviventes - todas idôneas, como padres, juízes e deputados.
Quando o terror se intensificou, as autoridades locais pediram ajuda à Corte e o rei Luís XV se interessou pessoalmente pelo caso, mandando homens de seu exército e oferecendo vultosas recompensas para quem a capturasse. Foram utilizados os mais variados métodos de captura, com caçadores experientes, armadilhas, iscas envenenadas, mas sem resultados práticos.
Em quatro ocasiões, diferentes animais de grande porte – lobos e hienas – foram mortos, mas em pouco tempo novas vítimas apareciam. O último ataque observado foi em junho de 1767, e depois nada mais ocorreu, sem explicação coerente. Até hoje, mais de duzentos anos depois, não há uma explicação definitiva sobre o que foi a Besta de Gévaudan.
Se não há uma explicação comprovada, só restam as especulações, e porque não fazê-lo em grande estilo, como ousou o diretor Christophe Gans? Com roteiro de Stéphane Cabel, Gans apresentou a sua versão dos fatos, com muita ação e aventura, juntando o estilo videogame com um enredo bem amarrado, mostrando um pouco do poderoso jogo de intrigas e interesses que era comum na época retratada. Se non è vero, è ben raccontato, como dizem os italianos...
O diretor não esconde a sua afinidade pelos mangás, ou quadrinhos japoneses, que já lhe renderam um filme anterior, muito cultuado pelos fãs: “O Combate: Lágrimas do Guerreiro” (“Crying freeman”, FRA,1995), estrelado pelo mesmo Mark Dacascos. As sequencias alucinantes de ação alternam-se com os relacionamentos tensos dos personagens, numa recriação bem feita de cenários e figurinos.
Mas, realismo histórico fica melhor em documentários, não em filmes de ficção. As sequencias de luta em “O Pacto dos Lobos” também são antológicas, no melhor estilo Hong Kong. A apresentação dos personagens principais é surreal, com Mani distribuindo porradas debaixo de uma chuva torrencial, numa das coreografias marciais mais bonitas do cinema.
O diretor usa e abusa de determinados efeitos, como a alteração da velocidade da imagem durante as cenas de ação, e na montagem apresenta as lutas corpo a corpo em três planos (geral, golpe, reação), numa velocidade tal que quase só se veem as sombras em movimento. O fato de ter utilizado câmeras digitais facilitou a inserção dos efeitos especiais.
O entusiasmo com que “O Pacto dos Lobos” foi recebido na França acabou prejudicando-o no mercado externo, que esperava um filme épico “sério”. Mas, como um produto de entretenimento adequado ao público atual, o filme consegue ser mais do que uma caça-ao-monstro-com-artes-marciais.
Com as suas duas horas e vinte de duração, o filme mostra um fato histórico inusitado, entremeado por uma aventura capa-e-espada, tendo como pano de fundo o embrião da futura revolução francesa. Com uma linguagem dinâmica, o filme prende a atenção e surpreende até o fim, em meio às reviravoltas do enredo.
O elenco é um dos pontos fortes do filme. O misterioso índio faixa-preta é vivido por Mark Dacascos, que foi realmente campeão europeu de kung-fu no início dos anos 80. Ele abandonou as competições para fazer filmes como “Only the Strong”, “Double Dragon” e “A Ilha do Doutor Moreau”, além do já citado “O Combate: Lágrimas de um guerreiro”. Na televisão, assumiu o papel título do seriado “O Corvo”, originado a partir de um filme estrelado pelo filho de Bruce Lee, Brandon.
A cortesã Sylvia é vivida por bela Mônica Bellucci, que ficou famosa ao estrelar “Malena”, indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2001. Mônica, que foi uma das vampiras do “Drácula” de Coppola, e esteve nas duas sequencias de “Matrix”. Seu então marido na vida real, Vicente Cassel, faz outro importante personagem de “O Pacto dos Lobos”, o desajustado Jean-François de Morangias.
O ponto negativo do filme já foi na fase de home video, onde a distribuidora optou por uma edição de padrão inferior ao que a produção certamente merecia. A edição em DVD, da Europa Filmes, limitou-se a uma edição com tela cheia e poucos extras. Posteriormente foi lançado o Blu-Ray já com  o formato de tela em widescreen anamórfico. Como extras, Trailer, Teaser e TV Spot, Entrevistas, Making Of, Bastidores, O Monstro, Notas sobre Elenco e Diretor.
O Making Of é legendado em português, tem nove minutos de duração, e dá uma visão geral do filme. Bastidores e Entrevistas são trechos do Making Of, sem nenhuma novidade. Na edição americana da Universal, além do filme vir em Widescreen anamórfico, vem também as cenas deletadas, trailers e notas de produção.
Apesar das deficiências da edição em DVD, “O Pacto dos Lobos” é diversão garantida para os amantes de filmes de ação, além de dar mais um lampejo do que foi a turbulenta Europa pré-Revolução Francesa. Assista e tire as suas próprias conclusões.

domingo, 20 de janeiro de 2019

Coluna Claquete - Artigo: O dia em que Stieg Larsson revirou na tumba


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Newton Ramalho

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Artigo: O dia em que Stieg Larsson revirou na tumba



Talvez o nome Stieg Larsson não seja tão familiar para a maioria das pessoas. Este jornalista sueco, que passou a maior parte da vida denunciando extremistas, racistas e praticantes de violência contra as mulheres, foi o autor de uma trilogia de livros extremamente exitosa, que foram transformados em ótimos filmes – mas tudo isso sofreu uma reviravolta com o filme “Millennium: A Garota na Teia de Aranha”.
Antes de falar deste desastroso lançamento, vamos voltar no tempo, quando Larsson ainda estava entre nós. Karl Stig-Erland Larsson nasceu na Suécia em 1954, e quando começou a exercer a profissão de jornalista, dedicou-se a investigações sobre o extremismo político em seu país. Tendo presenciado um estupro coletivo na adolescência, Larsson criou uma extrema aversão à violência contra a mulher, que marcaria sua vida para sempre.
Pode parecer estranho que na Suécia, um dos países com melhor qualidade de vida no mundo, aconteçam coisas que só imaginamos no Brasil do fascismo descarado de 2019, como xenofobia, violência contra a mulher, racismo, homofobia, etc.. Mas, como ele relata em um dos seus livros, 18% das suecas já foram ameaçadas por homens uma vez na vida, 46% já sofreram violência cometidas por homens, 13% foram vítimas de violências sexuais, e 92% de vítimas de agressão sexual não prestam queixa à polícia.
Essa vida de luta contra o extremismo nunca trouxe sucesso para Larsson, e até lhe granjeou inúmeros inimigos que constantemente o ameaçavam de morte. Por isso mesmo, Larsson nunca casou legalmente com sua companheira de longa da Eva Gabrielsson, pois pela lei sueca, seu endereço teria que ser tornado público, o que era um risco em função das ameaças que sofriam.
Seu primeiro livro, “Os homens que não amavam as mulheres” (“Män som hatar kvinnor”) foi um sucesso estrondoso, ao ponto dele ser o segundo autor mais bem sucedido mundialmente em 2008. Os outros livros da trilogia, “A menina que brincava com fogo” (“Flickan som lekte med elden”), e “A rainha do castelo no ar” (“Luftslottet som sprängdes”), foram igualmente bem sucedidos. Estima-se que tenham sido vendidos 80 milhões de cópias no mundo, e um em cada quatro suecos comprou algum livro da trilogia.
Infelizmente, Larsson não viveu para gozar o sucesso de seus livros. Ele morreu de ataque cardíaco aos 50 anos, possível resultado de uma vida cheia de stress, e maus hábitos de vida. Após sua morte, e em face do sucesso de seus livros, houve uma disputa judicial sobre os direitos de sua obra, e o pai e o irmão de Larsson levaram a melhor. Larsson deixou boa parte de um quarto livro inacabado, que ficou em posse de Eva Gabrielsson.
Os livros foram adaptados para o cinema em uma versão sueca, cobrindo os três livros, “Os Homens Que Não Amavam as Mulheres” (“Män som hatar kvinnor”, SUE, 2009), “A Menina Que Brincava Com Fogo” (“Flickan som lekte med elden”, SUE, 2009), e “A Rainha do Castelo no Ar” (“Luftslottet som sprängdes”, SUE, 2009).
Embora de produção modesta comparados com Hollywood, a trilogia fez um relativo sucesso, e lançou no mercado mundial os atores Michale Nyqvist e Noomi Rapace. Posteriormente, em 2011, foi feito um remake americano com Daniel Craig e Rooney Mara, “Millenium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres” (“The Girl with the Dragon Tattoo”, EUA, 2011).
Tanto as versões suecas quanto a americana mantiveram uma boa fidelidade ao texto original, e mantiveram o interesse do público na obra de Stieg Larsson. Essa visão de cifrões foi o mesmo que balançar um pano vermelho na frente de um touro. Após ganhar a disputa com a companheira de Larsson, o pai e irmão dele cederam os direitos para a continuação das obras.
Foi contratado o escritor David Lagercrantz para continuar a obra de Larsson, já tendo publicado “A garota na teia de aranha” (“Det som inte dödar oss”) e “O homem que buscava sua sombra” (“Mannen som sökte sin skugga”). Os livros são razoavelmente bem escritos, os personagens mantém as suas características, mas o texto carece do estilo detalhista e rebuscado de Larsson, o que já é um demérito.
E como dizem que não há nada tão ruim que não possa ficar pior, foi feito o filme “A Garota na Teia de Aranha” (“The Girl in the Spider’s Web”, EUA, 2018). O filme, em teoria, é baseado no quarto livro da série Millennium, o primeiro de Lagercrantz. Contudo, o que vimos na tela tem pouco a ver com a obra literária.
Apesar de ser rodado na Suécia, e ter os mesmos personagens, parece ser alguma coisa totalmente diferente. Na trilogia original, Mikael Blomkvist era um cinquentão curtido por uma vida estressante, obcecado pelo trabalho, pouco afeito a relacionamentos e de uma ética indestrutível – o próprio alter-ego de seu criador. Lisbeth Salander, por sua vez, era o resultado de uma vida de abusos e violência doméstica, desenvolvendo habilidades físicas e mentais que a tornavam única. Seu maior inimigo, desde sempre, fora o pai.
O que se vê no filme “A Garota na Teia de Aranha” é totalmente diferente. Para começo, a história é diferente do livro. Até aí, tudo bem, isso acontece quando se adapta um livro para o cinema. Mas, os personagens parecem ter saído de outra obra. Mikael Blomkvist deixou de ser um cinquentão para um homem apenas um pouco mais velho que Lisbeth. Seu papel no filme é completamente nulo, ao contrário das primeiras obras, onde os dois se harmonizavam numa simbiose perfeita, com seus defeitos e qualidades virando praticamente uma sobremesa de queijo com goiabada.
A trama é toda centrada em Lisbeth Salander (Claire Foy), que virou um Jason Bourne feminino. Foi introduzido uma infância com abuso sexual pelo pai, que nem de longe passa na obra de Larsson. O comportamento da personagem parece tão estapafúrdio, que atravessar um rio de motocicleta parece ser o menos problemático. A atriz inglesa, Claire Foy, tem o carisma de uma porta, e não consegue transmitir nenhuma veracidade ao papel.
O que parece que parece é o investimento em uma nova personagem do cinema para filmes de ação, totalmente dissociada da obra original, e que deve aparecer muito daqui pra frente. Talvez seja baseada nos livros de Lagercrantz, talvez não. O certo é que foi criada mais um personagem caça-níqueis, desses que tanto infestam o cinema. Assistam por conta e risco.

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Coluna Claquete - Filme da Semana: "Três Segundos"


O jogo que acabou três vezes


A única coisa boa da idade é que temos a oportunidade – nem sempre aproveitada – de ser testemunha de momentos históricos. Um destes momentos, que tive a chance de assistir pela TV foi a final de basquete dos jogos olímpicos de Munique, em 1972. Esse evento, tão interessante e único, foi tema de um belo filme russo, “Três Segundos” (RUS, “Dvizhenie vverkh”, 2017), feito quase meio século depois.

Esta Olimpíada foi uma das mais tumultuadas da História. Em plena Guerra Fria, era uma das poucas oportunidades para soviéticos e assemelhados desafiarem os americanos e demais países ocidentais sem envolver armas e exércitos.

Contudo, nessa mesma época fervilhavam muitos movimentos das mais diferentes ideologias, inclusive de palestinos, que buscavam o direito a uma pátria, e praticavam sequestros e atentados. Em Munique, a facção Setembro Negro invadiu o alojamento de Israel e fez inúmeros reféns. Por despreparo da polícia alemã, o saldo final foi cinco terroristas, onze atletas israelenses e um policial mortos.

Mas, embora algo seja mostrado neste filme, o foco principal foi a atuação da seleção de basquete da União Soviética, que embora tivesse muitos talentos e chegasse a ser campeã da Europa, não podia ser comparada a nenhuma equipe americana. Foi com um grupo pouco experiente e com diferenças regionais acirradas que o técnico Vladimir Garanzhin (Vladimir Mashkov) precisou trabalhar para as Olimpíadas.

Além das dificuldades com a equipe, Garanzhin tem seus próprios problemas, com um filho necessitando uma cirurgia, e toda a pesada burocracia da União Soviética atrapalhando seus planos. Ganhando aos poucos a confiança de seus comandados, o técnico consegue montar uma equipe forte, mas fortemente lastreada nos talentos pessoais de alguns jogadores, em especial Sergey Belov (Kirill Zaytsev). Ele logo percebe que precisarão ir à fonte do basquete, no próprio território americano, para conhecer mais sobre o esporte.

A construção da história é interessante, embora tenha uma atmosfera de dramalhão bem ao estilo russo, embora não atrapalhe o resultado final do filme. Boa parte das duas horas e treze minutos do filme é dedicado à construção da equipe e sua preparação para a Olimpíada. Uma edição mais enxuta traria um ritmo mais dinâmico ao filme, mas talvez desagradasse seu público-alvo.

O ponto alto do filme é mesmo a partida final contra a equipe americana. Naquela época, atletas profissionais não podiam competir numa Olimpíada, então todos os jogadores americanos vinham da liga universitária, que é o acesso natural para a liga profissional. Mesmo assim, as seleções americanas eram imbatíveis, nunca tendo perdido uma partida, daí o tamanho do desafio que os soviéticos tinham pela frente.

A partida final é mostrada quase em tempo real, empolgando mesmo quem nunca ouviu falar dessa partida. Mais emocionante ainda foi o final – os finais, na verdade – já que erros da arbitragem forçaram a repetição dos três segundos do título.

O filme é bem feito, com uma ótima ambientação de época, e traz uma visão crítica interessante da antiga União Soviética vista da ótica dos russos de hoje. Os atores, a maioria jovem, atua muito bem e dá muita vida ao filme.

Tem um ponto do filme que irá irritar um pouco os brasileiros. Ao mostrar a Copa Intercontinental de 1972, realizada em São Paulo, a imagem é de uma cidade à beira-mar, e o gigantesco ginásio do Ibirapuera foi reduzido a uma quadra de condomínio. Será que os realizadores do filme não tinham ideia de que São Paulo fica 80 km distante do litoral, e que o ginásio do Ibirapuera comporta folgadamente dez mil espectadores? Além disso, o uniforme da seleção brasileira traz um amarelo bem mais escuro, e o jogo com os soviéticos é uma verdadeira batalha campal.

“Três Segundos” é um filme interessante para se ver, principalmente pela diferença do padrão hollywoodiano a que estamos acostumados. Mais interessante ainda é conhecer um evento real com um nível de detalhe poucas vezes mostrado antes. Durante a exibição dos créditos finais são mostrados os momentos finais do jogo real, com imagens da televisão da época.


Título original: “Dvizhenie vverkh”