sexta-feira, 18 de maio de 2018

Coluna Claquete - Filme da Semana: "Três Homens em Conflito"






Newton Ramalho

 

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 Filme da Semana: “Três Homens em Conflito”


 Hambúrguer com gosto de espaguete


Uma das figuras mais constantes no imaginário popular em qualquer canto do mundo é o cowboy americano. O gênero produziu filmes com atores tão díspares como Tom Mix, Gary Cooper, Roy Rogers, Alan Ladd, Randolph Scott, Gregory Peck, e a lendária associação dos dois Johns, Ford e Wayne. Outros atores e personagens mudariam para sempre o gênero, com filmes como “Três Homens em Conflito”, de 1966.


Curiosamente, a transfiguração para as telas dos cowboys até o início dos anos 1960 sempre mostrara uma imagem romântica, com personagens sempre asseados, barbeados e elegantes, que nunca faziam nada errado, o perfeito herói "clean".


Foi preciso aparecer um italiano atrevido, para materializar o faroeste numa escala de realidade muito maior, e, que provocou uma verdadeira revolução na indústria do cinema entre os anos sessenta e setenta: o spaghetti western. Apesar do termo meio pejorativo (faroeste espaguete), o movimento iniciado pelo genial diretor italiano Sérgio Leone desencadeou uma avalanche de cerca de duzentas produções semelhantes, revitalizando o gênero.


A trilogia que inaugurou o ciclo foi com os filmes "Por um punhado de dólares" (uma refilmagem de "Yojimbo" de Kurosawa), "Por uns dólares a mais", e, "Três homens em conflito", este último, o objeto desta resenha.


A pergunta óbvia é: que diferença estes filmes apresentaram, em relação a tantos outros feitos anteriormente? Basta imaginarmos qual seria a aparência real de um dos heróis do Velho Oeste Americano. Homem rude, habituado a passar longos períodos de solidão nas campinas, florestas ou desertos, acostumado a enfrentar dificuldades tão diversas quanto picadas de cobra, ataques de índios, fome, sede, bandidos, xerifes truculentos, fazendeiros ambiciosos, etc.. Diversões? Bebidas, da pior qualidade possível, prostitutas cheias de doenças, e, jogos de cartas ou dados. Ponto para Leone, disparado.


Mas, não é só na aparência que os personagens de Leone são mais verossímeis. As pessoas retratadas em seus filmes são repletas de defeitos e qualidades - como qualquer ser humano - e não aquela dicotomia tradicional de mocinho bonzinho e vilão malvado. Não existem arquétipos, os principais personagens são farinha do mesmo saco, embora tenham características diferentes.


O título em português segue o óbvio ("Três homens em conflito"), mas o original vai direto à caracterização dos personagens: “Il Buono, il Bruto, il Cativo”, o bom, o mau e o cativo. O Cativo é Tuco (Eli Wallach), um mexicano saído da miséria para o banditismo, com uma ficha criminal que ia de assassinato a abandono de lar. É ambicioso, vingativo, mentiroso, e, cruel, embora tenha sentimentos de família e amizade, como todo ser humano.


O Mau é Olhos-de-Anjo (Sentenza, no original italiano, vivido por Lee Van Cleef), um assassino a preço fixo, que se gabava de sempre cumprir os "trabalhos" que assume. Diferente de Tuco, que era passional, Olhos-de-Anjo matava por obrigação, torturava para obter o que precisava, e, cooptava, quando via que era necessário. Em nenhum momento perdia a calma, ou se desesperava.


O Bom é Blondie (Clint Eastwood), um pequeno vigarista de boa pontaria, que vivia em parceria com Tuco, arrancando dinheiro de xerifes de pequenas cidades.


O que estes homens tão diferentes tinham em comum é o segredo de um tesouro confederado, enterrado num cemitério sulista. Ao longo do filme, alternam-se na dominação dos outros, com o objetivo de extrair a localização exata do tesouro.


Se a história é simples, na transformação em filme é que se nota a genialidade de Leone, que usou técnicas e movimentos de câmera bastante ousados, aliado a uma trilha sonora de excepcional qualidade, de ninguém menos que Enio Morricone, um dos maiores nomes da música no cinema.


Algumas sequencias do filme são antológicas, como o triplo duelo no cemitério. A passagem de imagem de rostos e mãos dos duelistas, aliado à atordoante música de fundo, é impressionante. Outra cena estranha e fascinante é quando Tuco percorre o cemitério, procurando a sepultura correta. O ritmo alucinante da câmera consegue traduzir toda a emoção e ansiedade do personagem.


Uma idéia que me passou pela cabeça (e que é tão válida quanto qualquer outra) é que os três personagens, na verdade, são lados de um mesmo triângulo, faces diferentes de uma mesma condição humana. Todos nós temos o nosso lado Tuco, que se preocupa com as necessidades elementares (comer, dormir, aquecer-se, divertir-se, etc.). Ao mesmo tempo, a sociedade em que vivemos hoje estimula o lado Olhos-de-Anjo, à medida que coloca a competitividade acima de tudo. É o nosso lado Gérson, que tem que tirar vantagem de tudo, cumprindo a velha máxima de que os fins justificam os meios. Por fim, existe o nosso lado idealista e ético, que contrabalança os outros dois, que é representado pela face Blondie. Talvez a "viagem" tenha sido grande nessa leitura, mas Leone mostra a sua visão otimista, ao derrotar o lado mais negro do triângulo.


O filme tem o suporte dos atores, todos excelentes, ainda em início de carreira. Clint Eastwood, o que alcançou maior sucesso, vinha de alguns pequenos seriados na tv americana, e, aceitou participar de "Por um Punhado de Dólares" por quinze mil dólares. Esse filme foi a grande guinada em sua carreira, projetando-o como um dos grandes nomes do cinema americano.


Lee Van Cleef repetiu a sua performance em inúmeros outros filmes do spaghetti western, mas não teve o mesmo sucesso de Eastwood. Eli Wallach, o Tuco, desenvolveu uma notável carreira na televisão americana. Uma curiosidade sobre este último foi a recusa de um papel em "A um passo da eternidade" com o qual Frank Sinatra ganharia um Oscar.


Uma atenção especial deve ser dada à trilha sonora deste filme, assinada por Ennio Morricone. A música tema é praticamente a marca registrada do faroeste no cinema, mesmo que a maioria das pessoas não tenha nem idéia de qual filme foi. Morricone é o mais produtivo compositor do cinema, ao lado de Maurice Jarre. São dele as trilhas de "O Anticristo", "1900", "La Luna", "Os Intocáveis", "Áta-me" e o maravilhoso "Cinema Paradiso", entre quase quatrocentos títulos que constam do site do IMDB.


A edição latina em Blu-Ray trouxe o filme na íntegra, e, nos extras, Bio-fimografia, Pôsteres, Fotos Sttil, Trailers, Trívia game com nota, Cenas excluídas, O Homem que perdeu a guerra civil, e Reconstruindo O Bom, O Mal e O Feio. As sete cenas deletadas elevam o tempo total do filme para 176 minutos. O formato de tela para este filme não poderia ser outro senão o widescreen. As panorâmicas constantes, os closes exagerados, e, o fantástico enquadramento de Leone, simplesmente desaparecem quando se faz o corte lateral para preencher a tela da tv. Este foi um dos poucos filmes que foi lançado em VHS com o formato de cinema, gerando muitas reclamações, semelhantes às dos primeiros usuários de DVD, que eram acostumados ao formato de videocassete. O som é fornecido em inglês, espanhol, português e francês 5.1, e italiano 2.0, o que favorece a excelente trilha sonora.


"Três Homens em Conflito" é um filme que interessa aos aficionados por faroeste, aos fãs de Eastwood, estudiosos de cinema, apreciadores de boa música, ou, simplesmente, quem quer curtir um bom filme de ação. Outras leituras podem ser feitas, a depender de como se olhe para o filme. Experimente, e faça a sua.




Título Original: “Il buono, il brutto, il cattivo”



segunda-feira, 7 de maio de 2018

Coluna Claquete - Série da Semana: "Hotel Beau Séjour"






Newton Ramalho

 

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 Série da Semana: “Hotel Beau Séjour”


Quem me matou?

Aqui no Brasil temos uma forma engraçada de referir a quem morre durante o sono: “foi dormir, e quando acordou estava morto”. Mas, é exatamente desta maneira que começa a interessante minissérie “Hotel Beau Séjour”, pois quando a protagonista acorda, descobre que ter sido assassinada.
Sem entender o que acontecera, ela passa a procurar quem e por que a assassinaram. O mais estranho é que algumas pessoas conseguem não apenas vê-la, conversar, agredir e até fazer amor com ela. Como e por quê? O espectador precisará acompanhar os dez episódios da série para descobrir.
Kato Hoeven (Lynn Van Royen) é uma linda e delicada joven que mora em uma pequena cidade do interior da Bélgica. Como todos os jovens da cidade, ela sonha em sair dali, mas a diversão resume-se ao campeonato de motocross e ao clube de tiro da cidade.
O namorado de Kato é Leon Vinken (Maarten Nulens), a grande promessa de motocross da cidade, e ídolo local. Mas, na noite de seu assassinato, Kato havia rompido com ele, sem maiores explicações.
Sem se lembrar de nada que aconteceu naquela noite, Kato descobre que consegue se relacionar como se estivesse viva com um grupo especial de pessoas. Entre elas estão seu pai, Luc Hoeven (Kris Cuppens), a filha do padrasto, Sofia (Charlotte Timmers), a melhor amiga, Ines (Joke Emmers), o corrupto chefe da polícia local, Alexander Vinken (Johan van Assche) e seu filho Charlie (Joren Seldeslachts), e um traficante de drogas, Vercammen (Jakob Beks).
Luc é alcoólatra, tem relacionamentos estranhos e leva uma vida amarga. Alexander Vinken é um policial corrupto que é tio de Leon e parece mais interessado na carreira dele do que com o filho, Charlie, que volta para casa depois de um internamento numa clínica psiquiátrica. Sofia é irmã de criação, cujo pai, Marcus (Jan Hammenecker) se casara com a mãe de Kato, Kristel (Inge Paulussen). Sofia invejava Kato, inclusive o namorado, e mostra um desejo oculto de ocupar seu lugar. Ines está envolvida com esquemas ilegais para ganhar dinheiro por conta de seu maior segredo.
Ninguém entende porque eles conseguem se comunicar com ela, embora todos pareçam ter alguma coisa a esconder, e possivelmente tem alguma parcela de culpa na morte da jovem.
A investigação do crime é feita pela delegada da polícia federal belga Beate Schneider (Renée Fokker), que precisa lidar não apenas com um serial killer, mas também com a incompetência e a corrupção da polícia local, que atrapalha mais do que ajuda.
O desenvolvimento da minissérie é magnificamente construído, de maneira que mesmo a protagonista se infiltrando em todos os ambientes, ainda assim precisa fazer sua investigação paralela, e só vai descobrindo a verdade a conta-gotas.
Produzida pela Netflix, e a exemplo do que foi feito em “Quatro Estações em Havana” e “A Casa de Papel”, a série usa atores locais, e ambientes pouco utilizados no cinema e na televisão. É uma maneira diferente de competir com a indústria cinematográfica, possivelmente com custos bem menores, e revelando um grande número de novos e velhos atores.
A jovem atriz Lynn Van Royen foi uma escolha acertada para a protagonista, e consegue passar ao espectador todas as suas dúvidas e inquietudes, ao mesmo tempo em que o coopta para descobrir o mistério de sua morte, mesmo que o destino final seja o seu completo desaparecimento.
A série tem uma abordagem diferente do sobrenatural, mostrando que os monstros piores ainda são os vivos, que levam o seu egoísmo às últimas consequências, preservando seus segredos e comodidades, mesmo que isso prejudique a única coisa que impede o descanso de Kato – descobrir o seu assassino.
“Hotel Beau Séjour” une-se ao Hall da Fama das boas séries europeias, inglesas, francesas, escandinavas, espanholas, que tem surgido para o mundo nos últimos anos. Não por acaso, boa parte delas tem sido produzida pela Netflix, que já deixou no esquecimento o tempo em que era simplesmente um serviço de entrega de DVD pelo correio.

Título original: “Hotel Beau Séjour”