Filme da Semana: “Até o Último Homem”
Entre as centenas de filmes
sobre a Segunda Guerra Mundial, sempre acompanhamos os feitos heroicos daqueles
que mataram mais ou destruíram mais. É gratificante ter uma visão diferente de
herói, de alguém que procurou salvar mais, e que teve que lutar contra os seus
pares para viver de acordo com os seus valores. Esta é a história de “Até o
Último Homem” (“Hacksaw Ridge”, 2016), dirigido por Mel Gibson, em cartaz nos
nossos cinemas.
Embora hoje seja compreensível
que alguém faça parte de um exército mas se recuse a matar por questões
religiosas ou de consciência, isso parecia escandalosamente absurdo nos Estados
Unidos, em plena Segunda Guerra Mundial, quando o jovem Desmond Doss (Andrew
Garfield) ousou desafiar os seus oficiais com estas convicções.
Doss representava um caso
extremamente raro, pois numa época onde todos eram inflamados pela propaganda
bélica e o culto do ódio ao inimigo, recusar-se a tocar em uma arma parecia um
ato covarde e mesmo de completa insanidade.
Mas, além da questão religiosa,
Desmond vivera desde cedo as piores experiências ligadas à violência. O pai,
Tom Doss (Hugo Weaving), um veterano da Primeira Guerra Mundial, nunca vencera
os traumas dos dias de batalha na França, onde vira os melhores amigos serem
mortos em uma guerra sem sentido. Os filhos cresceram sendo surrados pelo pai
por qualquer motivo, enquanto viam a mãe sofrer com a violência doméstica. Tudo
isso fez Desmond querer tornar-se um home diferente do pai.
Ninguém conseguia entender o seu
senso de patriotismo, a paixão pela medicina e a vontade de ajudar os outros.
Mais que isso, os oficiais instigavam os companheiros de quartel a infligir uma
disciplina própria, castigando Doss por ser tão diferente.
Sustentando sua convicção até o
fim, mesmo correndo o risco de prisão numa corte marcial, Doss recebe a ajuda
da fonte mais improvável, o próprio pai, que buscou a ajuda de um antigo
companheiro da Primeira Guerra. Só assim ele pôde receber o treinamento de
socorrista e sem a obrigação de portar armas.
Vencida esta batalha, era hora
de enfrentar a guerra real. Junto com os colegas ele foi enviado para o
Pacífico, onde o Japão dominava grande parte das ares estratégicas. Ao longo de
três anos de guerra, sua atuação nos campos de batalha foi sempre corajosa e de
grande valia para seus pares, a ponto de receber duas Estrelas de Bronze por
bravura nas batalhas nas Filipinas.
O filme, porém, foca a atenção
no que seria a mais brilhante participação de Doss em sua carreira no exército.
Em 1945, o Japão já tinha sido forçado a recuar da maioria dos territórios
invadidos, e agora via-se obrigado a defender-se dentro das próprias
fronteiras.
A ilha de Okinawa, no sul do
Japão, é uma das maiores ilhas do arquipélago. Tanto os japoneses quanto os
aliados sabiam que a ilha era crucial para poder invadir o país, de modo que a
população civil foi evacuada, e montou-se um fortíssimo esquema defensivo. Há
dois ótimos filmes sobre esta fase da guerra, ambos dirigidos por Clint
Eastwood: “A Conquista da Honra” e “Cartas de Iwo Jima”.
Foi este momento crucial da
guerra do Pacífico que Doss e seus companheiros enfrentaram ao chegar na ilha.
Embora já tivessem enfrentado os japoneses nas Filipinas, onde contavam com o
apoio da população, agora a situação era bem diferente.
Num território inóspito, de
difícil acesso, era preciso subir uma enorme falésia para aceder à posição mais
favorável. Lá em cima, mesmo submetidos a intensos bombardeios da marinha
americana, os defensores estavam protegidos em cavernase passagens subterrâneas,
a maioria delas cavadas pelos próprios soldados japoneses.
Naquela altura da guerra, os
soldados japoneses eram formados por pessoas inexperientes, reservistas ou
jovens, pois todos os anos de guerra já haviam tomado a vida de muitos soldados
antigos. Contudo, todos eles tinham a determinação de lutar até a morte pelo
Imperador e pela causa que consideravam ser sagrada.
As batalhas eram verdadeiras
carnificinas, e os atacantes ainda tinham a desvantagem de ter suas bases na
praia, muito abaixo do planalto onde combatiam. Com isso, após cada batalha era
necessário recuar, e quem não conseguia fazer isso com suas próprias forças
ficava à mercê dos japoneses, que varriam o front para matar os inimigos feridos
que encontrassem.
Embora Doss tivesse partilhado
lado a lado com os colegas em todos os momentos de batalha, ele recusou-se a
recuar e deixar os companheiros feridos abandonados em campo. Sozinho, e escondendo-se
dos soldados japoneses, ele coletava os feridos, um a um, e levava para a beira
do penhasco, onde os descia com o auxílio de uma corda. Apenas em uma noite ele
resgatou 75 companheiros que estariam condenados à morte sem a sua ajuda. Doss
resgatou até dois japoneses, mas o pessoal que recolhia os feridos embaixo não
tinha o mesmo nível de compaixão dele.
O elenco está muito bem, o que
reflete o trabalho direto de Gibson, destacando-se o próprio Andrew Garfield,
que personifica o próprio caipira inocente e fervoroso, além da breve mas
sempre eficiente atuação de Hugo Weaving, que mais uma vez mostra a sua
versatilidade como o traumatizado pai de Doss.
A escolha do tema é uma
agradável surpresa em tempos tão intolerantes, ainda mais com a direção de Mel Gibson,
que tem uma enorme coleção de filmes violentos no currículo. Contudo, este
mesmo Gibson é católico ligado a uma ala bem radical da Igreja, e não é difícil
associá-lo ao personagem central deste filme, mesmo que Doss fosse adventista.
“Até o Último Homem” é um filme
interessante, mostrando um aspecto pouco conhecido da Segunda Guerra Mundial, e
que certamente agradará ao grande público, embora seja bom ter ciência de que
algumas cenas podem chocar pelo realismo brutal. Não saia imediatamente,
durante os créditos são exibidos alguns depoimentos das personagens reais,
inclusive o próprio Desmond Doss. Recomendo.
Título Original: "Hacksaw Ridge"
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