Filme da Semana: “Corações Sujos”
Na guerra, a verdade é a primeira vítima. Esta
citação, atribuída ao dramaturgo grego Ésquilo, parece que jamais perderá sua
validade. Em todas as guerras a propaganda sempre será uma das armas mais
importantes, e atrelada a ela, a manipulação de ideias e fatos. Também foi
assim com um evento pouco conhecido da História do Brasil, acontecido após a
Segunda Guerra Mundial, e que só veio à luz do dia através do belo livro de
Fernando Morais, e do filme de Vicente Amorim: “Corações Sujos”.
Poucos sabem, mas, embora o Brasil nunca tivesse
entrado em guerra com o Japão, os imigrantes daquele país, que aqui formavam a
maior colônia do mundo, foram muito perseguidos, impedidos de viajar
livremente, de possuir rádios, de ter publicações em sua língua, de transmitir
sua cultura às crianças, e mesmo até mostrar sua bandeira.
Não
é de estranhar que, após o término oficial da guerra, a maioria da colônia
japonesa no Brasil duvidava que o Japão tivesse perdido. Em sua lógica, o Japão
nunca havia sido derrotado em dois mil anos, e se fosse o caso, todos os
japoneses teriam que cometer suicídio. Alie-se isso ao fato de, na década de
1940, as comunicações serem sofríveis, principalmente em tempos de guerra.
Por
conta de um incidente, onde um arrogante policial invadiu uma festa e profanou
a bandeira japonesa, usando-a para limpar as botas, começou um movimento
subterrâneo na colônia, que culminaria com dezenas de mortes e milhares de
prisões.
Os
nacionalistas ou tokkotai, que não acreditavam na derrota do Japão, criaram
organizações que tinham como objetivo punir os japoneses que “haviam se rendido
ao inimigo”, que falavam na derrota do país, que falavam português, e se adaptavam
aos costumes locais. Estes eram apelidados de “corações sujos”.
O
que para muitos parecia simplesmente ser uma “briga entre japoneses” na verdade
tornou-se um caso de sofisticada máquina de propaganda, com falsificação de
reportagens de revistas internacionais, revertendo a vitória para o Japão.
Esse
movimento prejudicou bastante a economia brasileira, pois tudo o que era
considerado “importante para o inimigo” era boicotado ou sabotado. Os tokkotai
trouxeram para o Brasil, principalmente o interior de São Paulo e Paraná, ações
de guerra que nunca tinham acontecido durante a guerra real.
Ao
longo dos anos 1946 e 1947, 23 imigrantes foram mortos pelos tokkotai, e 147
ficaram feridos. O caso tomou proporções tais que mais de 31 mil imigrantes
foram presos durante anos, dos quais 381 efetivamente julgados, e 80 condenados
à prisão e expulsão do país. Em 1956, todos terminaram sendo anistiados pelo
presidente Kubitschek.
Ao
contrário do livro de Fernando Morais, que como sempre prima pela farta
documentação e testemunhos, o filme traz os acontecimentos em forma de ficção,
mostrando-os sob a ótica do fotógrafo Takahashi (Tsuyoshi Ihara), sua mulher
Miyuki (Takako Tokiwa), e a pequena Akemi (Celine Fukumoto).
Takahashi
é cooptado pelo Watanabe (Eiji Okuda), um oficial reformado do exército
imperial japonês, para participar do movimento de punição aos traidores da
pátria. Takahashi sente dúvidas sobre se é certo o que fazem, principalmente
quando ele mesmo tem que falsificar fotografias para criar a ilusão da vitória
do Japão.
O
filme recria de forma competente o Brasil rural do pós-guerra, e da colônia
japonesa. O diretor de fotografia usou um filtro amarelado que remete ao
universo em torno do qual acontecem os fatos. Por outro lado, o uso de um
filtro que desfocava as bordas incomoda um pouco pelo excesso com que foi
aplicado.
Outro
detalhe que chamou a atenção – e que incomoda qualquer amante das artes
marciais japonesas – foi a proposta do filme de usar a espada longa, a katana,
para suicídios. Na vida real, era oferecido às vítimas dos tokkotai um tantô,
uma faca militar japonesa. No antigo Japão, os samurais usavam, para o suicídio
ritual, a wakizashi, a menor do par que costumeiramente utilizavam. Seria
impossível fazer isso com a maior.
Esquecendo
estes detalhes técnicos, o filme é importante por mostrar estes fatos
aparentemente esquecidos da história brasileira, e que na verdade são mais uma
mostra de como a intolerância e o fanatismo fazem mal à humanidade. Seriam tão
bom que as pessoas vissem estes filmes e tomassem para si essa mensagem de comunhão
de vida. Bem, se a verdade é a primeira vítima da guerra, a esperança sempre é
a última que morre.
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