Filme
da Semana: “Medo e Tremor”
Culturas diferentes sempre são
atraentes, embora muitas vezes seja difícil compreendê-las, principalmente
quando se está vivendo em outro país. Isso ainda se torna mais complexo quando
o país em questão é o Japão, que ao longo de sua história passou longos
períodos isolado do resto do mundo. Este isolamento propiciou tradições e
valores que são muito diferentes de outras culturas, e sempre causam espanto
aos gaijin, os estrangeiros. Um filme que explora este tema de uma forma muito
interessante é “Medo e Tremor” (“Stupeur et Tremblements”, 2003), dirigido pelo
francês Alain Corneau.
O filme é baseado no livro de
mesmo nome escrito pela belga Amélie Nothomb, que, em tese, seriam suas
memórias do tempo em que morou e trabalhou no Japão. Filha de diplomata, Amélie
morou no Japão quando criança, e apaixonou-se pela cultura japonesa,
tornando-se fluente na língua, embora não na escrita.
A personagem Amélie (Sylvie
Testud), porém, é uma intérprete, fluente em francês, inglês e japonês.
Contratada por uma grande corporação japonesa, ela quer realizar seu sonho de
morar e trabalhar no Japão.
O universo empresarial no Japão
é bem diferente do resto do mundo. O presidente da companhia, Sr Haneda (Sokyu
Fujita) é inacessível, o vice-presidente, Sr Omochi (Bison Katayama) é colérico
e obeso, o chefe da contabilidade, Sr Saito (Tarô Suwa) também é agressivo e
exigente, e na última escala de superiores de Amélie, sobra a linda e eficiente
Fubuki (Kaori Tsuji), uma das poucas mulheres a exercer função gerencial na
empresa.
Logo, Amélie irá descobrir que
falar a língua ou conhecer os costumes não a habilita a transitar livremente no
universo japonês. Na verdade, sua primeira grande gafe acontece quando ela
serve chá para visitantes de outra companhia. Ao agir e falar como uma
japonesa, ela cria uma situação desconfortável para a empresa.
Seu novo tropeço acontece quando
ela prepara um relatório sobre uma empresa belga, a pedido do simpático Sr
Tenshi (Yasunari Kondo). O trabalho causa um grande tumulto, pois isso é
considerado uma quebra de hierarquia, já que o responsável pela área estava em
viagem de negócios. Mas, para Amélie, a maior decepção foi saber que quem a
denunciara fora a própria Fubuki.
Estes tropeços resultam em
atribuições cada vez piores para Amélie, que chega ao fundo do poço quando recebe
a tarefa de cuidar dos banheiros do escritório. Mesmo assim, ela não desiste do
trabalho, pois para um japonês, pedir demissão é uma desonra inadmissível.
O filme foi muito fiel ao livro,
e traz para o leitor uma rara visão da cultura japonesa sem glamour, observada
por alguém que já conhece muito do país, e pode fazer uma análise comparada.
A história se passa em 1990,
época em que a economia do Japão era considerada avançadíssima, com
ensinamentos para o mundo todo sobre qualidade, eficiência na produção, e
outros avanços, enquanto que as relações no trabalho ainda se conduziam como no
tempo dos samurais. A lealdade e obediência cega eram consideradas mais
importantes que a inovação, as promoções demandavam um longo tempo de serviço,
e as humilhações públicas eram o castigo mais comum. Será que hoje ainda é
assim? Talvez não, embora certas coisas nunca mudem.
Mas, além dos choques culturais,
o filme traz a ótima performance das duas atrizes principais, embora o grande
destaque seja da francesa Sylvie Testud. A atriz, que não fala japonês, decorou
suas mil e cem falas graças a um método fonético, e sua atuação no filme lhe
rendeu os prêmios César e Lumière de Melhor Atriz, e a Estrela de Ouro do
Cinema Francês. Seu jeito inocente dá muita credibilidade à personagem, e
garante o humor necessário para essa história de humilhações.
Mas, talvez o ponto mais
importante do filme seja o de chamar a atenção para a sofrida mulher japonesa,
que precisa abdicar de vida própria para consagrar ao trabalho, e nunca tem o
reconhecimento devido da sociedade.
Recomendo a todos tanto o filme
quanto o livro, que já tem uma edição em português. O título se refere à forma
como um japonês deve apresentar-se perante o Imperador, com medo e tremor,
perante uma figura considerada divina.
Título original: “Stupeur et Tremblements”
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